Cordas a laçarem o caos
Ontem eu comprei uma corda, uma três tentos americana com fivela e tudo. Não laço boi, mas daqui para frente onde eu for, essa corda vai junto. Ela me traz certo alento diante do caos da sociedade na qual vivemos.
Corda americana três tentos com fivela, boa para laçar o caos. Créditos: The New York Public Library on Unsplash |
Um caos que me fascina à tempos...
... faço trinta e três anos no próximo maio e meu pai já era comerciante antes mesmo de eu nascer. O CNPJ dele é dois anos mais velho e antes disso já trabalhava informalmente no ramo. Pedra do Indaiá, minha terra natal, é cidade minúscula e meu pai sempre trabalhou mais de setenta horas por semana. Por aqui não acontece muita coisa de importante e muito pouco tempo sobrava para meu pai visitar outros centros urbanos, estados, países. Ele nunca saiu do Brasil. No máximo dirigiu até Goiás e o Rio de Janeiro.
Curiosidade nunca lhe faltou, sobre as coisas de um mundo mais dinâmico do que os eventos por entre as paredes da mercearia. Pouco lembro dos anos oitenta e noventa, memória que tenho é mais deste século. Refresco no entanto sobre fitas cassetes com documentários do Discovery Channel que meu pai comprava por correio e assistia em casa. Nem antigamente, nem hoje, meu pai gosta de ler. Prefere ver televisão, documentários passados enquanto almoça ou janta.
Primogênito, homônimo e funcionário que o sou, também cresci apreciando documentários. Em 2001, meu pai foi o primeiro residente da cidade a contratar uma TV via satélite. Programação paga, DirecTV. No almoço e na janta, estava sempre a ver algum documentário no Discovery Channel.
Eu que ficava mais em casa, via todos os documentários que me interessavam. Via uma vez só, não suportava reprises e vídeos inéditos eram poucos. Então eu assistia muito jornal, GloboNews e CNN Espanhol. E acho que esse assistir me perturbou e me perturba até hoje.
Para quem não se lembra, 2001 foi ano do ataque ao World Trade Center. Eu vi tudo em primeira mão e compreendia aquilo melhor do que muita gente adulta. Compreendia porque já tinha visto os documentários sobre o ataque de 1993 no mesmo local e sobre a resposta de Ronald Reagan aos supostos atentados de Gadaffi em 1985. Eu sabia que aquilo tudo levaria a uma guerra muito grande, mas obviamente não esperava que fosse o mais longo e caro conflito da história militar desde a invenção da pólvora.
Às sexta-feiras meu pai e eu sempre íamos à Divinópolis, comprar suprimentos no atacado. Naquela época tínhamos uma Kombi, e lembro-me até hoje que durante a viagem daquela semana não conversamos nada sobre o preço do arroz ou do açúcar. Mesclado ao zunido da carburação dupla, reverberada no forma pão de forma do veículo, o assunto foi inteiro sobre como os Estados Unidos iriam invadir o Afeganistão. Meu pai apostava que seria através de motocicletas, sidecars tipo os modelos alemães da Segunda Guerra. Eu já achava que seria uma campanha de bombardeio, como na Líbia de 1985. Até mesmo um pequeno ataque nuclear.
Desde à época dos documentários em VHS, a série do Discovery que eu mais gostava era "Planeta em Fúria". Vulcões, maremotos e tornados eram muito mais fascinantes para uma criança do que biografias e tour de fábricas. O Brasil no entanto não sofria com nenhum desses fenômenos, exceto por um ou outro redemoinho mais forte. Então eu era fascinado com desastres naturais, mas não me assustava com eles. Talvez seja por isso que me tornei fotógrafo de raios e enchentes.
O que me assustava eram os documentários sobre armas nucleares, que lançadas das pradarias de Montana ou da Sibéria, poderiam muito bem atingir Pedra do Indaiá por engano. Me assustavam tanto, que até parei de jogar futebol.
Na escola todo dia tínhamos futebol, eu sempre fui perna de pau mas jogava nem que fosse no gol. Porém no último ano do ensino fundamental (2002), toda vez que alguém pronunciava "futebol" eu me lembrava da maleta "football" que o Presidente dos Estados Unidos usaria para ordenar um eventual ataque nuclear.
Eu não ficava propriamente atormentado com a possibilidade de uma guerra nuclear, não era esse o sentimento. Acho que passava por minha mente algo mais parecido como uma espécie de fascínio obscuro, de como só eu sabia que a vida de todos os jogadores bons de bola naquela quadra, poderia ser findada por uma ogiva nuclear reentrando na atmosfera naquele momento, disfarçada por entre os rastros de umidade deixados pelos aviões à jato que cruzavam a rota BSB-SDU sobre o Indaiá.
Pouco me assustavam as enormes explosões acidentais que aconteciam nas fábricas de fogos de artifício do município. Explosões nucleares eram sentidas primeiro por um grande feixe de luz cegante, seguidas por uma onda de choque que chegaria antes do próprio som. Fábricas de fogos, quando explodiam não se via brilho algum. A onda de choque de fato chegava primeiro, mas era tão fraca que não gerava medo, só mesmo tristeza pela trabalhador que talvez tivesse morrido no acidente.
Por essa época parei de jogar de futebol, e embora a guerra nuclear continuasse a me preocupar e fascinar, eventos corriqueiros não mais ativavam minha imaginação nesse sentido. Passei a pensar em cogumelos atômicos somente nos meus pesadelos.
Para além dos documentários sobre estoques longínquos de urânio e plutônio, o espectro sombrio de uma catástrofe nuclear voltou a rondar meu dia-a-dia em 2009, já como estagiário na Universidade Federal de Minas Gerais. Ali, um projeto de consultoria administrativa me enviou à campo para o Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear, que ficava dentro do campus da universidade.
Eu já estudava lá fazia dois anos e não tinha ideia da existência do CDTN e as coisas interessantes que aconteciam ali dentro. Além de plutônio e urânio, o CDTN continha amostras de trítio, usado para bombas de hidrogênio. Os prédios todos têm bunkers, para o caso de bombardeio aéreo. Muitos dos cientistas residentes preocupavam-se com catástrofes nucleares mais do que eu próprio.
No CDTN, o local que contém a maior quantidade de material radioativo é o prédio mais velho do complexo: o reator nuclear! Foi um choque para mim descobrir que na "capitar mineira" tinha um reator nuclear. Choque e deslumbramento, porque quando me convidaram para visitar o reator fui alegre como um menino em loja de doces.
Adentrando o prédio, conferiram identidade e autorização de entrada. Entrei e fiquei sozinho num galpão, estilo industrial, muito limpo. O cientista responsável atrasou-se um pouco para a reunião e eu fiquei ali encostado numa grade à beira de uma piscina. Receoso, fiquei pensando ser uma daquelas piscinas de lixo nuclear comum em usinas nucleares.
Quando pensei que seria prudente me afastar, o cientista chegou e disse:
- Peço desculpas pelo atraso, mas já vi que você encontrou o reator sozinho.
E apontou para a piscina, que na verdade era o fosso do próprio reator! Foi a única vez que lembro de sentir medo real de uma catástrofe nuclear, porque eu estava sobre uma bomba nuclear, com centenas de quilos urânio 235, enriquecido à 20%, sem sequer saber!
Mas o medo logo voltou a ser fascínio. Um fascínio pelos perigos escondidos do mundo, e de como só eu sabia que eles existiam. O cientista então explicou que o reator era seguro, que estava lá no fundão da piscina e pediu para que eu tirasse uma foto com o smartphone: profundo e invisível ao olho humano, a foto mostrou em detalhes os contornos da tampa do reator brilhando em verde sombrio.
Reator TRIGA IPR-R1 em Belo Horizonte - Créditos para o CDTN, a minha foto eu perdi |
Fascinado pelo mundo da energia nuclear e imerso no ambiente acadêmico, por conta própria comecei a estudar física nuclear, relatividade geral e mecânica quântica. Estudar os conceitos, não a matemática. Voltei a ler um velho livro que tinha, o primeiro que eu comprei por vontade em própria ainda em 2002: O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking. Das várias de vezes que adolescente li e reli o livro, essa foi a primeira vez que realmente entendi algo.
Tenho em mãos a primeira edição em português deste magnífico livro, traduzido por Ivo Korytowski e publicado pela Editora Mandarim em 2001. Na página nº 14 tem-se uma figura e breve explicação de como funciona uma reação em cadeia de fissão nuclear com urânio 235. Raios gama para cá, energia para lá e tanto mais. Porém o que mais me chamou a atenção, é que essa reação poderosa o suficiente para aquecer reatores e detonar bombas, pode ser iniciada através do impacto de um único nêutron na hora e no lugar certos.
Pequenas ações, interagindo através de uma cadeia de eventos cada vez mais ampla e assim influenciando no resultado de grandes acontecimentos, também é uma descrição possível para a teoria do caos. Foi Edward Lorenz, matemático e meteorologista norte-americano, que na década de 1960 estabeleceu as bases para a moderna teoria do caos.
No ano de 1961, trabalhando com modelos matemáticos de previsão do tempo, Lorenz cometeu um pequeno erro de arredondamento ao inserir valores no sistema computacional. O erro era tão pequeno, que no primeiro momento o programa de computador mostrava resultados para previsões climáticas completamente dentro daquilo que era esperado. Chuvas e ventos conforme a variabilidade histórica de tais eventos.
Mas conforme o computador continuava a processar o algoritmo de previsão do tempo, vezes e vezes mais, a amplitude do erro nos dados iniciais começou a ser sentida. As previsões passaram a serem cada vez mais estranhas, totalmente fora do histórico climático. Lorenz passou a ser muito conhecido pelo termo "efeito borboleta", ilustrado pela afirmação de que "o vento provocado pelo bater das asas de uma borboleta hoje, irá influenciar no processo de formação de um tornado no futuro".
Por um longo tempo a teoria do caos me perseguiu...
... sempre que algo inesperado acontecia, eu apontava para o "efeito borboleta". Mas o pior era sobre as coisas que não aconteciam, mas que podiam acontecer a qualquer momento. Olhando em retrospectiva, tenho que agradecer à Deus por não ter caído vítima de comportamento paranoico, porque isso era muito provável.
Acostumado a ler e ver informações sobre catástrofes, influenciado pela teoria do caos passei imaginar o perigo de um pequeno curto-circuito iniciar-se no depósito de lixo do CDTN, resultando em incêndio e liberando radioatividade sobre minha casa à dois quilômetros de distância. Assim como ocorreu em Chernobyl. O perigo de algum avião errar o Aeroporto da Pampulha por outros dois quilômetros e cair sobre minha casa, assim como aconteceu com o voo TAM 3054 em São Paulo.
O perigo de um meteoro obliterar Pedra do Indaiá, assim como Chelyabinsk em 2013. O perigo do Vulcão das Ilhas Canárias causar um tsunami e me afogar na praia de Guarapari. O perigo do gás canalizado no meu prédio, vazar e explodir como o Osasco Plaza Shopping. O perigo de terroristas se apoderarem de uma maleta nuclear soviética tipo RA-115, e explodi-la em Belo Horizonte quando da passagem do Imperador Naruhito pelo Zoológico Municipal; assim como no filme a "Soma de Todos os Medos".
Mas nem só de catástrofes vive o caos. Pequenos eventos imprevisíveis multiplicam-se no cotidiano de cada um, milhões ou bilhões de casualidades perceptíveis no somado humano de uma metrópole como Belo Horizonte. O caos das coisas grandes, me fez perceber esse caos das coisas pequenas no deslizar de cada veículo pelo asfalto quente; no vai-e-vem de dedos e garfos durante o almoço no restaurante universitário, nos desatinos dos dias de tempestade, no soar de sirenes e motores distantes.
Ali na cidade grande de ruas tão largas quanto as ruelas do arraial são compridas, ninguém sabia quem eu era. Ninguém me parava para perguntar como meu avô estava de saúde, se o mercado do meu ainda estava aberto, onde estava meu irmão. Ninguém me notava e este descolamento entre mim e o mundo imediato, me permitiu observar aquele caos todo com os olhos de um observador distante. Por momentos sucessivos que me achava insulado de tudo aquilo, instantes outros de medo breve em ser consumido pelos perigos atrás de cada ação e esquecido no limbo que minha existência sertaneja nada ali significava.
Um misto de fascínio e imprudência me mantinham longe da paranóia que poderia se esperar de tal mente atinada para o caos. Mas foi o espectro de uma não-comoção comunitária se caso ali eu morresse, no ar negro da metrópole por entre serras e minérios, que me fez querer ficar longe daquele caos. Me afastei, primeiro para Divinópolis, depois de volta para meu arraial do Bom Jesus do Tamanduá. Por derradeiro, me escondi no micro sertão da Serra da Boa Esperança.
Voltei para o céu estrelado da roça, e para um mundo cheio de filamentos em forma de teias de aranha, fribras de juta, cipós ...
.. linhas de algodão para costurar, de nylon para pescar. O fio é como a linha, monolítico. Fio de arame para boi cercar, liso como nas cercas modernas de estacas transpassadas. Corda é trançado de linhas, e cabo de aço juntado de arames lisos. Olhando de perto, corda é corda e linha é linha. Olhando de longe, corda é linha e linha nem se vê. Olhando de muito, muito longe, tudo é ponto.
Betelgeuse de perto não é ponto, nem linha, nem corda. É imensidão ofuscante, é o tudo que se vê desde os bólidos à seu vento expostos. Batizada "α Orionis", essa estrela é 887 vezes maior que o nosso Sol, já imenso. Mas do meu quintal, Betelgeuse é unha. Braço em extensão máxima, a ponta do meu dedo mindinho encobre por completo a super-gigante vermelha brilhante dos céus.
As coisas que acontecem com Betelgeuse independem da minha vontade, mas dependem das coisas das quais minha própria vontade depende. O muito que estamos distantes um do outro, eu e a super estrela, ainda residimos dentro do mesmo universo regido pelas mesmas leis fundamentais.
O tamanho massivo desta estrela deve-se à fase avançada que ela se encontra no ciclo de vida estelar. Mais acelerada que no Sol, Betelgeuse queima principalmente hélio e produz carbono como resultado. O mesmo carbono que irá formar os fios e cordas de nylon e algodão dos futuros homenzinhos vermelhos que irão prosperar na órbita da filha de Betelgeuse, daqui bilhões de anos. Essa estrela-encoberta-por-unha ainda produzirá o ferro dos fios e cordas de aço, no derradeiro sopro da morte em esplendor de supernova.
Estrelas produzem os materiais que irão compor fios e cordas, e são elas próprias formadas por cordas. Eu, você, o Sol e Betelgeuse. Todos somos formados por cordas de energia que vibram em frequência de precisão absoluta, formando as constantes universais da mecânica quântica.
Acredite, assim como de longe uma corda parece tão fina que considerada seria linha bi-dimensional. Para quem essa de bem pertinho vê, certeza teria da sua espessura em terceira dimensão oculta. Assim são as cordas subatômicas da principal teoria que tenta explicar o funcionamento de tudo no universo, a "Teoria das Cordas". Essa que diz que existem outras sete (ou vinte e duas) dimensões, tão diminutas que não se vê mas que sentimos. Dimensões cujas voltas entre si viram um Calabi-Yau, ou como prefiro chamar, nós. É dentro da geometria decadimensional destes nós, que cordas de pura energia vibram no exato tino permitido pelo espaço disponível. Esse vibrar quântico, é a ligação mais direta entre toda a matéria do universo e as únicas constantes que existem no cosmos.
Só o vibrar das cordas é constante, todo o resto é fluxo...
... mas isto não implica que tudo seja caos. O universo é determinístico, tudo o que já aconteceu, está acontecendo e pode acontecer já está dado. As partículas e campos quânticos comportam-se conforme regras matemáticas baseadas na precisão absoluta das constantes universais. Não existe livre-arbítrio real para o cristão, o muçulmano, o animal ou qualquer outra partícula interativa do universo.
Werner Heisenberg como pai da mecânica quântica e par de Einstein, descreveu o universo com matemática probabilística e para muitos leigos permitiu o argumento de que "Deus joga dados". O leitor que pesquise, nunca entederá dois mistérios: qual é o jogo prefiro de Deus e o que faz colapsar a função de onda quântica.
Dó, muita dó é preciso de ter algum humano prepotente que procure entender Deus e o que na verdade ele quis dizer por livre arbítrio. Talvez exista tal liberdade de ação, mas certamente não é no sentido daquilo que a interpretação de padres e imãs nos dá.
Outra tipo de dó tenho de quem procura explicar as contradições entre a Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica, principalmente a explicação do porque a função de onda colapsa. É algo tão complicado, que dá nó na cabeça de qualquer um. Mas não dá nó cego, porque parte da resposta já temos, na certeza não do porquê, mas do quando a função de onda colapsa: é quando a partícula interage com o universo a seu redor.
Pois se tudo aquilo que se pretende categorizar como ordenado ou caótico, é somente aquilo que interage. E interações andam conforme a Relatividade Geral, na precisão absoluta das equações de Einstein, ditadas pelas constantes universais que transmitem sua rigidez para o universo na forma como vibram as cordas de energia por entre o nó decadimensional.
E é por isso que comprei uma corda, para me lembrar que o caos não existe.
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