Nabucodonosor nas ruas desertas do cerrado

“Não matarás”, diz o quarto mandamento. Acho que por efeito dessa lei divina é que sumiram com a Arca da Aliança. Como iriam os judeus recuperarem Judá sem matar um ou outro babilônico? Não era possível, pelo menos assim deveriam ter pensado os guerreiros judeus do século sexto antes de cristo, que sumiram com a Arca e Tábula dos Dez Mandamentos nas cavernas do Monte Nebo. Discípulos de Jeremias.

Pois que sumindo com a escrita em pedra dos Dez Mandamentos, anos mais tarde poderiam dizer aos leigos que o mandamento era “não matarás, exceto…”. Não tendo a pedra divina por prova, qual jurista antigo iria alegar o contrário com tantos judeus cativos na Babilônia? É claro, o que estou escrevendo é uma heresia, porque o judaísmo bem que reconhece e aceita o exílio como punição divina. Castigo de Deus por ter o povo de Judá, em primeiro lugar desviado-se dos mandamentos divinos antes mesmo das expedições de Nabucodonosor.


Os judeus carregam a Arca da Aliança por sobre o Rio Jordão. Josué ao fundo reza a Deus. Estavam fugindo dos exércitos de Nabucodonosor II, Rei da Babilônia. Imagem do domínio público

Mas vale a analogia, sobre aquilo que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chamam de o “espírito das leis”. Nenhuma lei é mais espiritual do que a carta escrita em material eterno pelo próprio Deus, mas estes dois pesquisadores de Harvard e autores do livro “Como as democracias morrem” (2018) referiam-se ao “espírito das leis” como o significado que a legislação tem para além daquilo que é possível codificar em texto, literal.

As cavernas do oriente médio ficam muito longe da minha casa, por aqui cavernas que temos são pequenos ocos entre as rochas graníticas erráticas depositadas milhões de anos atrás por ação de geleiras. Nesses ocos, encontramos ninhos diversos de pássaros e outro animais menos bonitos, serpentes.

Jararacas, corais, cascavéis e jararacuçus que saem do mato rastejando e andam sobre os seis metros de asfalto que separam minha casa do cerrado. Aqui é a roça, e as seriemas chegam até o meu portão para caçarem tais serpentes. Seis metros de largura numa rua de seis casas, no fim de um lugarejo de dois mil habitantes. Nem nome tem, aqui é mais uma rua alfabética.

Pouca importância tem minha rua para o mundo, mas muita a tem para mim e para aqueles que violam o espírito da lei. Exemplos tenho é dois, do espírito infringido pela Polícia Militar de Minas Gerais. Duas multas de trânsito me aplicaram, por andar sem documento do veículo e por parar em contramão numa rua esquecida no fim do mundo.

Recorri? Não.

Estacionei "errado" foi de propósito, para ter um pedacinho de papel que provasse meu ponto de vista. Multaram-me e o mundo não ficou nem melhor nem pior por isso, porque infringiram o espírito da lei. E este qual é, não sei ao certo porque não fui eu quem escreveu o código de trânsito brasileiro. O legislador no entanto, dificilmente se importaria com regras de trânsito em locais onde não há trânsito. Multar um carro por parar em contramão em rua sem outros carros, é o mesmo que multar por manobrar irregularmente dentro de uma garagem.

O alfabeto português tem vinte e seis letras, que combinadas expressam 34 fonemas, que recombinados divergem nas 400 mil palavras do dicionário Houaiss. O alfabeto chinês do mandarim, tem pelo menos 100 mil caracteres. Quem dirá número de palavras. Mas tudo isso é nada, porque o nada na verdade é o diminuto insignificante frente ao tudo maior; e maior é a humanidade.

Tantos que infinitos são os modos pelos quais o ser humano pode agir na República Popular da China, sob a legislação com mais joelhos dobrados do mundo. Usassem os delegados do Partido Comunista do alfabeto chinês inteiro, não conseguiriam jamais tintar em letra impressa todos os possíveis comportamentos sociais que a lei deveria regular.

Mesmo que a justiça vermelha fosse concentrada no mais diminuto dos países, também não seria capaz de expressar em letra toda a infinitude de ações dos mil sacerdotes vaticanos. Por isso existem os juízes, para interpretarem as leis dos homens; assim como os vaticanos interpretam a lei de Deus.

O futuro da cidade-estado e suas ramificações sacerdotais pelo mundo está garantido pelo menos até a volta do Cristo, não tendo até lá nenhuma divindade a quem recorrer para interpretação primordial dos dez mandamentos e versículos posteriores. Mas as leis dos homens não precisariam de tantos juízes assim, e ainda mais juízes dissociados da realidade, se além da letra justa a legislação contivesse pelo menos um parágrafo explicativo do seu espírito.

Ajudaria, mesmo que redundasse nas limitações semânticas. Porque valia absoluta teria é o sobrepujar o julgo "imparcial" de juízes ateus (no sentido espiritual legislador), para bater a porta da casa do legislador e perguntar sobre o espírito da lei. Pois que leis humanas têm vida curta, morrendo antes mesmo dos seus legisladores primordiais.

Eu nasci em 1988, ano da promulgação da Constituição Federal vigente. À época eram 559 constituintes, muitos dos quais ainda se encontram vivos. Eles sim, guardam consigo o espírito da lei.

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