Vim pra canoar, cá está nosso rumo: sois remo?

Somos é passageiros em canoas, desde a barra congelada onde o Amu encontra o Ussuri.

Canoeiro da tribo Avá. Crédito: TV Brasil EBC

Khabarovsk é uma cidade no extremo oriente da Federação Russa, até 2018 era capital do Distrito Federal do Extremo Oriente, um estado russo quase do tamanho do próprio Brasil. Em setembro de 2018, as eleições regionais deram vitória para o partido de oposição a Vladmir Putin. A oposição foi eleita simplesmente por ser oposição, obstante qualquer plano de governo concreto. Os votos foram dados como forma de protesto, porque o que o povo queria era ver Putin pelas costas.

Em retaliação, no dezembro de 2018, Putin determinou a destituição de Khabarovsk do posto de capital, transferindo o assento para Vladivostok mais ainda ao leste. No setembro seguinte, a oposição tornou a ganhar a eleição regional, dessa vez para deputados, por larga margem sobre o partido de Putin.

Em nova retaliação, Putin mandou prender o governador regional de Khabarovsk eleito em 2018, acusando-o de assassinatos em 2005 e 2006. Acusações falsas, que revoltaram o povo. Protestos vêm sendo realizados continuamente desde julho de 2020, apesar da pandemia. O maior dos protestos teve 80 mil manifestantes, isso numa cidade de apenas 600 mil habitantes.

Lá se vão dez meses de protestos diários, demandando a libertação do governador preso e a deposição de Vladimir Putin. Dez meses sem qualquer concessão por parte do governo federal russo, que praticamente não se importa com os protestos.

Protestos estes que se fundem por semelhança e concomitância temporal à revolta contra Aleksandr Lukashenko, ditador da Bielorússia. Revolta também sem sucesso.

Assim como sem sucesso também foram os protestos em Moscou inspirados por Khabarovsk e pela Bielorrússia, e liderados por Alexei Navalny, o principal líder da oposição russa. Em agosto de 2020, Putin ordenou o assassinato de Navalny, por envenenamento. Salvo por intervenção de médicos alemães, Navalny retornou para a Rússia em 17 de janeiro de 2021 e foi imediatamente preso, sob a acusação absurda de que violou os termos de sua liberdade condicional enquanto estava em coma na Alemanha, recuperando-se do envenenamento.

Desde então, Navalny está preso na Sibéria e neste 21 de abril de 2021 completa 22 dias em greve de fome. Os protestos em Khabarovsk que antes eram de 80 mil manifestantes, agora se reduziram à poucas dezenas. Na Bielorússia, todos os membros importantes da oposição foram presos ou fugiram do país.

Provavelmente Nalvany irá morrer, porque o governo russo não se preocupa com ele (tanto é que mandaram matá-lo) . Tão pouco se preocupa em esconder que a morte de Navalny é culpa do estado, não se importam. Em 2015 assinaram Boris Nemtsov, então líder da oposição, à tiros e de frente para o Kremlim, no local mais seguro da Rússia. Disseram ter sido “um assalto”, mas todos sabiam que foi Putin o mandante do assassinato, porque simplesmente aconteceu a luz do dia no centro de Moscou.

Embora mais furtiva, a tentativa de envenenamento de Navalny também foi concebida para permitir que o governo russo protocolarmente negasse o envolvimento no caso, cinicamente. Um cinismo absurdo, colossal, porque o veneno usado foi o temido Novichok, produzido e utilizado somente pelo Serviço Secreto Russo (FSB, ex-KGB). Todos aqueles que foram envenenados por Novichok, o foram sob ordens diretas do presidente russo.

Mas Putin e Lukashenko também não podem clamar vitória. Nessa história toda os dois também foram derrotados. Lukashenko porque hoje precisa dormir com um olho aberto, e só comer comida enlatada, pronta. Paranóico que está em ser assassinado por algum de seus próprios soldados ou envenenado pelos membros do FSB, que Putin enviou para ajudá-lo a reprimir a oposição. Já a derrota de Putin vem do fato de que ele tentou por sucessivas vezes ser amado pelo povo russo, para cada vez se ver mais odiado. Volta e meia se vê enrolado nos seus antigos truques de julgamentos falsos, atentados terroristas armados e guerras provacadas. Cada vez com menos resultado. Cada vez mais caros.

Navalny irá morrer nos próximos dias, a Rússia entrará em revolta. Putin ordenará a invasão da Ucrânia, para desviar o foco. E qual será o resultado disso tudo? Não sabemos, mas certamente não será o resultado esperado por Lukashenko, Putin e seus opositores. Talvez nem o resultado previsto por mim.

Nenhum deles é nada, impotentes frente ao próprio sistema político, econômico e social em que vivem. O tal “sistema” é complexo no sentido da “teoria dos sistemas complexos”, impossível de ser entendido, previsto e controlado através da análise deste com um todo. É como o vôo dos pássaros em bando, cuja geometria e direção são impossíveis de serem previstos mesmo pelo mais potente dos computadores.

Assim é o Lago de Furnas, inserido no contexto humano complexo do Brasil e sobreposto pela própria complexidade dos padrões climáticos e do ecossistema natural que o envolve. Entre o fundo do lago e a cota 762 existem infinitas marcas na régua, centímetro a centímetro, milímetro a milímetro, e fatores menores. Só nos importa a última?

Assim é o sistema político, econômico e social brasileiro no qual estamos inseridos. Os senhores que lêem este, também tecem? Pois teçam uma linha que comece nos protestos em massa antes da Copa das Confederações de 2013, passando pelas operações da Lava-jato de 2014 e 2015, os protestos de 2016 e a eleição de 2018. O bordado dessa linha é a catástrofe sanitária, política e econômica que vivemos; expressa na completa decepção dos milhões de brasileiros bem intencionados que se manifestaram e votaram em anos anteriores, desejando resultados diferentes destes que temos agora.

Manifestaram-se por uma hora, repetidas vezes nos quatro domingos do mês, e depois voltaram para dentro de seus apartamentos e redes sociais. Votaram em dois presidentes, tiveram três, perigam um quarto. Na fila da urna, por uma hora, em dois turnos, e depois de volta para seus apartamentos e redes sociais.

Whatsapp e outras telinhas coloridas, locais onde o cidadão se sente rei e pode dizer o que tem de dizer, e dizer na cara dos governantes. Mesmo que o dizer seja por bafo virtual, em fotinha também virtual, de políticos tão distantes da realidade que seus próprios corpos parecem virtuais.

É um dizer que se confunde com o fazer, como um pai rígido dentro de casa, um pai do sistema antigo que quando fala é ordem que dá. E as crianças obedecem, ou o couro arde. Pai do sistema antigo, que trabalha duro, ganha dinheiro e paga contas. Pai bruto, que não transmite afeto, educação própria, que acha que o criar filhos e tudo o mais se resume ao fator dinheiro.

Os indivíduos de hoje se sentem pais do governo, das instituições públicas. O que expressam no bordão:

- pago meus impostos, quero resultados.

Como se o governo fosse algo dissociado do próprio cidadão, uma entidade independente. Uma empresa talvez, e por isso procuram-se “bons gestores” como modelo de bons governantes. Fossem iguais, não haveria necessidade do dicionário ter dois verbetes para tal. Governo e empresa, público e privado, imposto e preço, produto e direito, eleitor e cliente; tem-se mais de dois verbetes. Portanto que não são iguais, nem governo com empresa, nem o dizer com o fazer.

O dizer e achar que resolve, protestar e achar que resolve, o votar e achar que resolve, o pagar e achar que resolve, são todos rostos do mesmo comportamento humano, derivado da evolução animal: o agir sem pensar. Animais seguem nos seus trilhos de migração, alimentação e reprodução porque nestes caminhos foram acostumando-se a andar, guiados pelos rastros de cheiros e pegadas de seus coespécimes. Trilhos custam caro para os animais que os criam, porque bichos têm baixa capacidade cognitiva. Por não conseguirem analisar de forma objetiva o mundo a seu redor, animais abrem trilhos na base da tentativa e erro, e fatais são estes. Se por um caminho o bicho não acha comida, tenta outro, outro e outro. Até que ache comida, ou morra de fome. Se come, procria, gera prole e ensina esse novo trilho aberto. Se perece de fome, não procria, e não ensina para ninguém o trilho que abriu e que não levou a comida alguma.

O ser humano pensa, essa é sua vantagem evolutiva. Para abrir novos trilhos, não depende da tentativa e erro, porque é capaz de analisar o mundo ao redor e chegar a conclusões e previsões antes mesmo de agir. Mas todos nós que fazemos atividades repetitivas, sabemos que dentro da nossa mente existe uma espécie de “piloto automático”. Esse é responsabilidade da “Rede de Modo Padrão” do cérebro humano, uma série de sinapses que conecta diferentes regiões cerebrais responsáveis em conjunto pela padronização de comportamentos.

A atividade cognitiva consome muita energia e é lenta. Sendo que para sobreviver o Homo Sapiens precisa realizar tarefas repetitivas (ex.: capinar, descascar, dirigir, teclar), e tais tarefas não podem ser lentas ou consumir mais energia do que produzem. Por isso que o “objetivo de pensar é parar de pensar”, ou seja, nossa atividade cognitiva processa-se até o limite quando acertamos o modo de agir para produzir algum resultado minimamente satisfatório, a partir do qual padronizamos nossos comportamentos através do “modo padrão”.

Na sociedade capitalista que vivemos, pagar resolve muita coisa. Nas relações entre patrões e empregados, o dizer resolve muita coisa. Nos livros de história, o protestar parece que resolveu muita coisa. Nas peças de marketing eleitoral, o votar é vendido como se fosse capaz de resolver algo.

É tudo mentira.

Nenhuma ação individual ou solução simplista é capaz de sobrepor-se a tendência do movimento vigente de qualquer sistema complexo. Problemas complexos, exigem soluções complexas. Tão complexas que um só não pode imaginá-la, e grupos inteiros não são capazes de implementá-las precisamente.

A que se agir como os pássaros voando em bando, num movimento impossível de prever ou controlar por aqueles dentro ou nos de fora. Mas o vôo do bando, complexo que o é, atinge seu objetivo de chegar ao local de repouso, alimentação ou reprodução. Os pássaros não entendem o movimento de forma global, mas respondem por si próprios. Movimentam as asas e voam com forma definida por poucas regras internas ao indivíduo, relacionadas à posição da ave frente à seus vizinhos: nem longe demais, nem perto demais; mantendo o alinhamento da direção do voo para se aproximar da direção média percebida da visão de seus vizinhos imediatos.

É um tipo de “comportamento emergente”, da tal “emergência” que pode se aplicar como adjetivo à outros substantivos: política emergente, economia emergente, estratégia emergente. E a emergência é o que nos permeia, não é nenhuma invenção. A qual nossa cegueira não nos permitia ver.

A cegueira de sempre querer o controle das coisas, de que o mundo se dobre a vontade humana, quando nem mesmo conseguimos controlar nosso próprio corpo ou o próprio pensar. Emergente é a vida, no somar das milhares de pequenas ações que tomamos no dia-a-dia e que sem percebermos, vai gradualmente nos empurrando por uma direção a qual não prevíamos. Vida plena têm aqueles que cientes desta emergência, limitam os desvios de planejamento na vida às bordas de uma estrada imaginária pela qual seguimos zanzando.

A vida e tudo nela é o zanzar.

O balanço que se dá nos rumos ao esterçar para a banda oposta o movimento em que vínhamos até esbarrar no limite da estrada imaginária à bombordo ou estibordo. Termos marítimos para vias aquáticas, porque o tempo e o viver só nos permitem ir na direção da correnteza. O descer do rio, forçado pelo impiedoso passar do tempo que nunca volta atrás. A correnteza criada não por água, mas pelo interagir entre si e sempre criar dos humanos. Uma mudança antropológica constante, que somada a própria mudança da natureza desde a idade da pedra, passando pelos séculos do bronze, ferro e agora despencando em cachoeiras velozes, transformando por completo a natureza na vigente “idade do fóssil”.

E é essa analogia do navegar por rios sempre à vazante, que demonstra a imaturidade daqueles que buscam a simplificação das respostas para problemas contemporâneos complexos, refugiando-se no passado por meio de reacionarismos ancorados na lógica daquilo que rege a Rede de Modo Padrão. Os reacionários idealizam um passado, como um canoeiro medroso idealiza águas calmas à jusante. Calmaria falsa, criada por nossa própria mente que filtra o passado conforme nossas próprias limitações de memória. Os sensos que usamos para ver o presente, captam quantidade de informações da ordem de vezes aquilo que a memória consegue guardar. Por isso que no agora e no depois, vemos muito mais perigos, pedras imaginárias por debaixo da lâmina d’água. Sobre aquilo que se foi, guardamos só o que nos interessa. E se o que se foi, o foi a mais tempo que nós próprios, mais calmas parecem aquelas águas, descritas através das palavras de canoeiros que propriamente não se aventuraram por lá, mas que nos querem às tais nos guiar. Como um cardume de peixes, direcionados para a morte por outro grupo de predadores.

No sentido prático de tudo isso e relacionando este apanhado de constatações sociológicas com a origem desse próprio blog, a política, questiono:


- qual deve ser o sentido do ativismo político contemporâneo?

Aqui, senhor leitor, acabam-se as analogias e referências externas. Amigos que tenho, companheiros da política, a muito esperam de mim uma resposta para os anseios por dias melhores que todos eles nutrem. À eles atendendo, o que se segue é um novo esterçar da canoa, baseado na minha visão objetiva e subjetiva como canoeiro. Um esterçar noutra direção, que no futuro deve ser corrigido, por outro canoeiro, de modo a seguirmos zanzando por esse rio-estrada, sem encalhar nos barrancos ou afundar por entre as pedras.

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