Hounds reclusos
Muito que achei saber, espanto e até meio rubor tive surpreendido pelo Rio Samburá. Sendo esse a verdadeira nascente do Velho Chico, ali nos Medeiros, não no alto-da-serra. Samburá é mais espichado, dizem os geógrafos e certos estariam não fosse a aura do rio que escorre. Rio-santo, que em tendo nome de São e banhando o Bom Jesus na Bahia, a Abadia no Porto e tantos outros, nascente sua não se mede por espicho, mas por lonjura daquilo que profano é.
Pouco que se vê de gente ali naquelas veredinhas de águas frias, ventania sem descanso, sol sem sombra no sertão quieto da Canastra. Um que de manhãzinha inconsciente caia aos pés da frenética Lagoinha na capital, e acorde trazido para a beirinha do pé de São Francisco deitado sobre as flores da serra velha, no paraíso de Nosso Senhor acharia estar.
Nu em pelo, ali se encontram campeiros, bandeiras, guarás e canastras. Nu sem pelo, ali um léguas poderia nadar, sem outro semelhante topar. As treze poderia jantar e as vinte almoçar, sem que um reprimenda qualquer lhe pusesse. Carste ali domina, terra não é fértil como no Jardim do Éden, mas Adão ali sua Eva também faria prosperar.
Colorida como deve ser a casa de Adão e Eva. Rasga Canga, Serra da Canastra Wikimedia Commons |
O alto da Serra da Canastra é a liberdade em forma de lugar.
Mas não para todos!
Conheço muitos, que soltos em planaltos de vistas ainda mais largas e sussurros ainda mais baixos, presos estariam como se no gulag estivessem. Gente da canastra, gente da restinga, gente dos lajeados, gente das dunas. Gente que aonde vai, consigo carrega prisão de segurança infinita.
Quem em liberdade de fato vive, mas medo tem de em prisão cair; e quem em prisão de paredes volteia, mas em liberdade sonha retar. Preso está, livre também. É como se vê o sertão vazio que se mede os impedimentos! Pois que liberdade e prisão são faces do mesmo ser. Nos quadrinhos, Mestre dos Magos e Vingador um só são. Vezes quantas saídas foram abertas para os aprisionados? Portais mágicos que de porta nada tinham, pois que ali presos eles estavam por suas próprias mentes, incapazes de irem contra suas convicções para ao calor da família voltarem.
Nobres convicções tinham os meninos, do sangue azul que não aceitava o próximo não ajudar mode si próprio salvar. A nobreza dobrada para coisas que sequer existiam, fosse um piloto em seu pára-quedas ou um homem em forma de prisão eterna, com carcaça de monstro incomunicável. Quem aos meninos garantiu que tais eram reais? Mestre dos Magos, o mesmo que ali os aprisionava.
Prisioneiros da própria mente, amarrados à ameaças que só eles enxergavam.
Hounds atrás das grades, fazendas cercam, mas quem protegem? Foto de @vandenbussche_wim no Flickr |
Assim é este que vos escreve, em ferros posto neste mar-de-morros. Ao sabor do café e do pão-de-queijo, do suco de limão-capeta. No graminhá da romaria aos templos de pedra. No escutar dos vôos do carcará e dos piados do tristinho-da-meia-noite. Amarrado aos nós das promessas que fez àqueles que ama. Resignado com o fim que terá, desfeito sob essa terra e no tardar recomposto em átomo e memória, aos mesmos ventos e águas da Canastra que tanto adora.
Ao menos o que me aprisiona, são as mesmas coisas que feliz me fazem.
Pobre de quem vive o contrário!
O pequeno ocorrido de algo material perder e triste ficar, muito revelador é. Pois que um que se atina por mais de minuto na lamúria de ver bens se esvaindo, risco corre dessa lamúria prisioneiro ficar. Rappa, que lhe trazem as grades do condomínio? A concertina da casinha? O alambrado na sede da Buriti-pequeno?
Vai-se a Romaria, dias a pé. O que lhe importa mais são os cascalhos da estrada ou o manto que protege a imagem santa? Romaria é travessia, não produzida por minuto de olhar ao manto, mas sim pelos muitos dedo-arrancar pelo caminho. O tempo é que molda, o tempo é que cobra.
Noites sempre, por vezes décadas, um em varanda de casa senta para ceiar. A frente vê não a lua nascer, ou as estrelas cintilar; mas a ponta de aço da concertina, sem amor pelo que lhe toca. Agradam-lhe a abóbada celestial no céu escuro e a brisa fresca das noites sem lua, mas por décadas por vontade própria as prefere não ver, em troca de tijolos empilhados por vinte palmos, a lhe proteger.
Mas proteger o protegem somente daquilo que menos mal lhe fazem. O ladrão, que um dia virá ou não, e lhe roubará ou não um bem material que não, não terá no fim merecimento de lamúria maior que minuto. Tempo esse átimo, pálido no estender das décadas e décadas que o tal ali sentado na varanda, prisão criou para si mesmo longe do luar do sertão.
Fortalezas assim demais já vi, feitas de tijolos, fios cortantes e fios elétricos. Chamo-as de casas-caixote, e seus donos os denomino livres-do-livre-viver. Piores que Judas, os tomo. Pois que o pai da traição, a si próprio jamais traiu. Por trinta dinheiros Nosso Senhor entregou, um outrém. Trinta dinheiros é o que esses homens hoje presos em casa, gastam em meia rajada no clube da morte.
Ali ao longe vêem silhuetas de homens desenhadas num papel tamanho de saca. Por trinta dinheiros, sacam e as pontilham de furinhos imersos numa imaginação de ameaças que não existem, senão na espiral própria de ter e ter medo-de-perder para ter que ter mais e não ter medo-de-perder…
Mais feliz quem é pobre, porque mesmo sendo livre-do-livre-viver, pouco tem e menos ainda gasta para não ter-medo-de-perder. A inflação é inversa, mais faz quem menos tem. Não sendo trinta, menos ainda se fazem trezentos dinheiros, especialmente vindos de lugares onde nada é trinta e nem talvez trezentos.
Terras de horizontes infinitos, onde meses um passa sem outro semelhante topar. Terra onde trinta não é nada, tanto quanto brota da terra trezentos por trezentos a cada légua. Deserto de dunas, lugar de gente tão livres-do-livre-viver que do livre-viver os outros querem livrar.
Livramento este muito além das casas-caixote e os potinhos em alvo de papel. Livramento este proferido como em procissão de fogo, por homens vestidos de branco de tochas na mão. Mas tochas não de candeia e paina velha, e sim de polibutadieno hidroxilado, escorrido de certa casa-caixote às margens do velho-chico.
Não é o Samburá, mas o Wādī Ḥanīfah.
Wādī Ḥanīfah e suas pedras e águas falsas, rio não é. Foto de @eager no Flickr |
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