As cabras que morrem
Como quando bebês aprendendo a falar, aprendi inglês não no cursinho da tradução, mas do jeito infantil orgânico. Apple para mim é apple, não é maçã. Até aqui quantas palavras estão neste texto? Conte e repare no sentido primeiro de cada uma para você e piscarás no teu cérebro uma sucessão de imagens e acionamentos de redes neurais: emaranhados mentais que dão sentido as letras.
Letra, que no dicionário Michaelis define-se assim:
- Letra: (sf); (1) cada um dos sinais gráficos que representam um fonema ou um grupo de fonemas e servem para registrar a oralidade em linguagem escrita.
Com exceção talvez da própria Henriette Michaëlis, ninguém guarda na mente essa definição do que significa "letra". Cada um é só, na forma como define o que é "letra" e qualquer outro substantivo. O significado das coisas depende da olhar do significador, mas tem hora que acho faria bem cada um ter um Michaelis fincado na cabeça: viveríamos no paraíso talvez.
"É pecado matar, seu Padre?" Indagou o cristão, no que foi respondido que era pecado matar pessoas, não sendo contra animais e pecar é algo que o cristão não faz. Michaelis diz:
- Matar: (vtd e vint); (1) Dar morte violenta a; assassinar.
"Não matarás" é um dos dez mandamentos, da lei cristã e também da judaica. Vejo um garoto judeu ali nos seus 17 anos, determinado a cumprir o serviço obrigatório no Exército de Israel. Como é este emaranhado mental a dar sentido ao verbo transitivo direto "matar" na mente do futuro jovem soldado? Talvez ele já tenha visto o parente matar uma cabra, talvez tenha até participado do ato. Não é pecado matar animais, mas é matar também e algo de lampejo deixa da mente do açougueiro.
O matar do soldado que viu um açougueiro trabalhando, é um matar que envolve uma vítima indefesa (a ovelha amarrada) em uma morte dolorosa (o grito do animal) e sanguinária (o sangue que escorre no chão). E assim é o "matar" majoritário no conjunto de emaranhados mentais dos jovens de 17 anos em qualquer lugar.
Um bebê cabra sendo morto. Foto de Tom Simpson no Flickr (@randar) |
Soldado israelense toca violino na escotilha de uma máquina de guerra durante o cerco de Gaza em dezembro de 2023 |
- Matar: (vtd e vint); (2) Causar a morte a; levar à morte; aniquilar, eliminar, extinguir.
Soldado que toca violino sem vítima à vista, sem violência e sem sangue pode ser acusado de matar alguém? Pode. Porque o "matar" da segunda definição não é aquele do infligir violência mas sim o do "causar a morte" associado ao "aniquilar". Este último, também é verbo transitivo direto e na segunda linha do Michaelis definido como "tornar nulo ou sem efeito; anular".
No topo de seu Namer IFV, o soldado tocando violino não vê ser humano sendo morto como uma cabra. Mas ali não está num concerto: é um cerco bélico, feito para impedir que suprimentos cheguem a Gaza. A mera menção de que na estrada para Gaza estacionam-se dúzias de Namers, é ameaça suficiente para que qualquer caminhoneiro por ali não vá, sua carga de comida não chegue a quem tem fome.
O soldado do violino, com sua melodia suave, mesmo sem verter sangue mata! Porque torna nulo o palestino cujo alimento impedido o faria nutrir-se, tendo energia para algo fazer e assim desnulificar-se. Que fosse outro violino também tocar, no sol do deserto sem água e comida seria impossível para o palestino o fazer.
Até mesmo para o não-nulo, o não-aniquilado, o não-violentado, o não-ensanguentado soldado sobre o Namer, o Michaelis traz a morte:
- Matar: (3) (vpr) Dar morte a si mesmo; suicidar-se. (4) (vtd e vint) Causar sofrimento físico ou moral a; afligir, magoar, mortificar. (5) (vpr) Debilitar-se em extremo; pôr em prática o máximo empenho possível para conseguir alguma coisa; cansar-se, esfolar-se, extremar-se:ir, magoar, mortificar.
Pois que no limiar do saber que o "matar" do pecado mais é do que apenas a linha um, o soldado causa-se sofrimento moral, magoa-se. Longe de casa, da namorada e dos amigos, empenha-se para cumprir ordens. Debaixo do sol, trancado numa caixa de aço traz a si próprio sofrimento físico. Atento ao rádio do comando e ao discurso do governo, extrema-se. Matando a si próprio das maneiras definidas nas linhas terceira, quarta e quinta do Michaelis.
Na guerra, tão essencial quanto o rifle e a baioneta é o dicionário, que dá nome a morte.
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