O épico de Kiryat Shmona
Sobre as operações de enganação realizadas pelos egípcios afim de garantir a surpresa no ataque de 06 de outubro de 1973, dois pesquisadores da CIA escreveram o seguinte:
Having ruled out the possibility of total war, American and Israeli leaders failed to foresee a limited war because the signals they were receiving did not fit into their preconceived frameworks.
É uma conclusão tão óbvia, que nem precisaria ser escrita porque é a generalização de toda ação de camuflagem e confusão perpetrada em guerras: falsear o esperado, mas executar o inesperado.
Mestres espiões e generais uníssonos sobre uma mesa de xadrez são figuras de ficção, na realidade não existem. A guerra, como toda empreitada humana de grande escala, tanto é executada quanto planejada por múltiplos. Assim, planos mirabolantes estão fadados ao fracasso, mesmo sem ação do inimigo. Por discordância internas e falta de capacidade operacional dentro do próprio grupo aliado.
O movimento de um exército em direção à guerra é um de puxa, empurra e contém. Vai-se ali como uma ameba gelatinosa em movimento, apontando para cá e despontando para lá, espremendo por entre as frestas das barreiras em direção ao objetivo pelo caminho de menor dificuldade.
Enquanto escrevo este, o Irã segue como uma ameba. Apontando hora numa direção, hora em outra. Num esforço não-centralizado para tentar anular os esforços de previsão de Israel: como e onde será o tal ataque?
O passado importa
Hoje o caso é diferente de 1973, porque naquele tempo o consenso israelita era de que o inimigo não iria atacar apesar de bradar. Nos últimos 10 dias, permeia a liderança político-militar de Israel um senso de perigo iminente, certos de que uma ação inimiga tentará atingir o coração do país. O primeiro-ministro, dito estar sempre próximo de um bunker ou dentro deste.
Quando o ataque vier não será surpresa, mas tão somente quanto a sua ocorrência. O diabo está nos métodos.
Em 1973, com as imensas e regulares manobras egípcias na região do Suez e o histórico das três guerras de 1948, 1956 e 1967, assumia-se corretamente que se um dia viesse, a ofensiva árabe seria um ataque anfíbio seguido por formação de uma cabeça-de-ponte, adentrando o Sinai. Numa guerra total, avançada por colunas de tanques e cobertura de aviões sobre o Sinai. Assim, segundo a mesma CIA, fiavam-se os israelitas:
Israel clung to the idea that Egypt would not go to war until it had assured aerial capability to neutralize the Israeli Air Force.
Esse era o preconceito israelita na época: a guerra seria uma ofensiva de larga escala sobre o Sinai e para tal seria necessário que o Egito tivesse meios de neutralizar a força área judaica. Um preconceito derivado de como os israelitas viam-se a si próprios, incapazes de arriscarem seus tanques sem cobertura aérea, achavam que o Egito agiria conforme. Estavam errados.
No primeiro momento, erraram por apostar na guerra total. Visto que o plano inicial egípcio era avançar apenas 40 km no Sinai, liberando o Canal de Suez. Assim foi por dias, até que Sadat ordenou que os tanques avançassem mesmo sem cobertura aérea. Permitindo, com esse erro, a contraofensiva israelense e um massacre de blindados no Sinai.
Dois erros de concepção, dois preconceitos não-realistas. Mesmo que no segundo caso o tal preconceito tenha resultado numa oportunidade positiva para Israel (aniquilar os tanques egípcios), não deixa de ser um erro de avaliação.
O presente vê-se pela metade
Mais para quarto do que metade, é o que se vê. Esse presente nosso é turvo pela poeira levantada no ataque de abril, quando a maioria dos analistas interpretou erroneamente a madrugada do dia 14: não foi um ataque pontual telegrafado, mas sim uma declaração de guerra.
Em 24 de fevereiro de 2022, no primeiro dia da maior guerra mecanizada desde a morte de Adolf, a Rússia lançou entre 100 e 120 mísseis contra a Ucrânia. Qual foi a envergadura do ataque iraniano de abril? Foi maior. Cada um dos 120 mísseis balísticos disparados carregavam mais explosivos que seus equivalentes russos. Somam-se os 200 veículos aéreos suicidadas, cada com mais 50 kg de explosivos.
É com base nessa avaliação errada, que os israelenses esperam o novo ataque iraniano. Estão errados. A começar pela própria palavra: não será um "ataque". Tão pouco será uma ofensiva, não no sentido tradicional. Mas definitivamente será o início de um período de conflito semanal, quiçá diário.
Parte da enganação iraniana é esse atraso proposital no início das hostilidades. Deixando a IDF em prontidão toda noite, atenta as telas dos radares. Mísseis balísticos compõe parte fundamental do arsenal iraniano, drones também. Certamente que veremos uma repetição do ataque de abril, mas não como objetivo e sim por disfarce.
Dê ao inimigo razões para acreditar naquilo que ele já acredita. Foi isso que Sadat fez em 1973. Foi isso em Sinwar fez em 2023. É isso que o Aitolá está fazendo hoje.
O padrão de exercícios militares, de alertas aéreos, de declarações públicas feitas pelo Irã é o mesmo de abril. Tentam passar uma ideia de que "estamos te avisando, alertando, para não provocar muitos danos". E por ser isso que as IDF e o CENTCOM desejam, é nisso que acreditam. Viés de confirmação.
Os norte-americanos repulsam a ideia de uma guerra aberta contra o Irã. Impensável em meses de eleição presidencial. Impensável após o pesadelo no Iraque. Mas mesmo assim arriscam-se ao enviarem navios e aviões para o oriente médio, por quê? Porque acreditam que o jogo é um de cenas e contracenas. Como em abril de 2024 ou janeiro de 2020.
Os sionistas insistentemente buscam meios para iniciar um guerra contra o Irã. É o plano político de Nethanyahu desde a década passada. É o desejo confesso de Smotrich e Ben-Gvir, que veem na guerra uma chance de justificar a expulsão definitiva de todos os palestinos do rio ao mar. Expulsão e morte, claro.
Impensável para eles é a derrota, após 76 anos de vitórias. Revezes tiveram, verdade, mas derrota? Nunca. O espaço vital de Israel só fez crescer entre 1948 e hoje, seus inimigos só trilharam o caminho do enfraquecimento e auto humilhação. O "melhor exército do oriente médio" não permite ver-se de outro modo. Assim também acho que é, a IDF a melhor força armada daquela região.
Mas existe uma diferença entre "ser o melhor" e "ser suficiente".
As 10 baterias de Iron Dome são suficientes para impedir 30 dias consecutivos com 5.000 lançamentos de foguetes por dia do Hezbollah? Não. Os caças e os AIM-120 da força aérea são suficientes para deter 100 drones suicidas lançados por dia? Não. As 500 mil tropas estacionadas dentro de Israel são suficientes para protegerem os 10 milhões de judeus que vivem fora de Israel? Não.
O Irã tolerou pelo menos 500 mil mortes na década de 1980. Israel, é hoje 5 vezes menos populoso que o Irã era naquele tempo. Tolerariam os israelenses 100 mil mortos antes de lançarem ogivas sobre Teerã? Acho que não tolerariam sequer 10 mil mortes.
Mas não vejo interesse do Irã em usar a rodovia Beirute - Teerã (sob seu controle) para atacar Israel no norte, recrutando jihadistas entre a população conjunta de 155 milhões de muçulmanos ao longo do caminho. Por sorte, nesse momento essa intenção não existe.
Mas no dia 06 de outubro de 1973 Sadat não iria enviar seus tanques, dez dias depois mudou de ideia, mesmo que ilogicamente.
Guerra é isso, a morte da lógica. Esse texto, cheio de lógica, no fim não é nada.
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